Ela via a noite passar enquanto ele deixava sua mente vagar pelos sonhos. E servia-se de seu ronco para tentar pegar no sono; e acalmava seu gemido com as mãos num carinho curto e repetido, como se alisasse o seu cão.
Ele, com a cabeça amoldada de forma anatômica no travesseiro, sentia seu cansaço transformar-se em novo vigor, ressonando feito um bebê asmático em dias frios.
Já ela, cumprindo a rotina dos insones, revirava-se procurando uma posição melhor para as pernas. Fechava os olhos e levava a cabeça até um pensamento distante de seus afazeres diários. Mas logo aterrissava em sua vida e desviava-se do caminho do sono, que não era bom companheiro de sua noite.
Olhava o marido e via a calma daqueles que dormem. Sentia uma alegria estranha, o tipo que se sente pelo outro, comum somente aos generosos de alma. E se nessa hora tinha vontade de beijá-lo no rosto, fazia. Tarde da noite, sozinha, não é hora de se conter fazer o que se quer a quem se ama, ou mesmo amou um dia.
E tinha nos olhos o brilho da sorte que possuía o marido em dormir sem desespero. E também de sua sorte, de ter, mesmo na angústia da noite mal dormida, o único momento do dia exclusivamente seu.
De repente, sem quase abrir os olhos, ele se levantava, ia ao banheiro e voltava, sem ao menos perceber a luz do abajur acesa, iluminando as letras de um livro, que poderia ser boa ajuda para achar o sono.
Se iludia há anos com essa ajuda dos livros. A leitura, ao contrário do que ocorre com muitos, ao levá-la a um mundo de sonhos, pregava-a ao mundo real. Foi assim que conseguiu ler todos os clássicos. Proust e seus sete volumes, Dostoievsk e todo o seu peso russo, Flaubert e sua obsessão pela escrita perfeita.
Nada a fazia dormir, até que dormia. Assim, de repente, sem nunca conseguir precisar qual de suas técnicas foi a eficaz.
E, às seis da manhã, acordava com um beijo na testa, ou mesmo na boca em dias de maior paixão. Já há mais de 30 anos fazia o café enquanto seu marido se arrumava para o trabalho.
À mesa, em meio ao café, às torradas com geléia e ao característico silêncio do marido, lhe contava os sonhos que tivera e, à moda de Freud, os importantes significados que teriam e haveriam de lhe ser útil na vida.
Depois, despedia-se desejando um bom expediente no trabalho. Voltava à cama para sonhar os sonhos que com tanto primor havia contado ao marido na mesa de café.
Para vovô Beto e vovó Ellen, pelas semelhanças com estes aí do texto.